segunda-feira, 24 de junho de 2013

A despedida

- Tchau.

- Se cuida, até um dia - disse baixinho, ao pé de ouvido.

Era o primeiro abraço em pouco mais de três anos. Deixado para o último momento em que se viram, um desperdício. Não se sabia mesmo ao certo quando voltariam a se olhar. Virou as costas e caminhou até a porta que dava acesso à sala de embarque. Parou, inclinou o corpo e guardou a imagem na memória. Esperou até o último segundo, até a figura do seu pai sumir em meio às pessoas no saguão.

Mais uma despedida. Já eram tantas até ali. Foi preciso aprender a conviver com elas e tentar esquecer a mais dolorosa, quando não se teve mais a chance de ouvir novamente os conselhos do avô. Quando deixou de existir o olhar nos olhos claros e vivos por 76 anos. Apenas 76.

O abraço do aeroporto, contudo, aquele primeiro, teve prosseguimento em São Paulo, muito tempo depois. Despedida, reencontro. Como se o hiato nunca tivesse tido consciência. Sorte poder reencontrá-lo. Agradecera exatamente como havia feito com a mãe, porque também era um privilégio voltar a tê-la por perto.

E foram mais tantas outras despedidas. Recorrentes, corriqueiras, vivas no dia-a-dia. Seja qual for, das mais impossíveis de se passar por cima àquelas superadas em poucos dias. Há convivência, há cumplicidade. Não existem mais. Há amizade, há amor e de repente não existem mais. Como se as histórias pudessem mesmo ser apagadas da mente.

No metrô lotado. Na rua, sem qualquer pretensão. Uma visita rápida depois de tanto tempo. Um reencontro apressado, talvez o pontapé inicial do novo hiato.

- Que bom te rever.

segunda-feira, 28 de janeiro de 2013

Aquela breja (?)


Deu um abraço apertado no amigo de longa data. Tão perto, tão longe. A cena se repetiu apenas quatro vezes nos últimos três anos. Só podia ser assim. Havia um oceano inteiro no meio do caminho.

Viveu ao lado da integrante mais velha da família por um bom tempo. É neto com avó, avó com neto. Viraram amigos, companheiros. Hoje, a voz dela vem apenas pelo telefone.

Havia 70 pessoas na sala de aula. Podia escolher em que grupo ficar. Podia ficar ali, podia correr para o bar, podia ir ao debate ao lado dos três melhores amigos. Pouco mais de um ano depois, todos viraram uma foto pequena no chat à direita da tela.

Cresceu esmagado diariamente entre o irmão mais velho e a irmã mais nova. Ele casou, foi embora e não sabe mais jogar futebol de botão, embora, dizem, continua fazendo as faltas infantis no futebol de verdade. Ela foi morar quase entre aviões e continua bem longe.

Trabalhou no mesmo lugar que eles. Juntaram-se todos. Depois, cada um foi para um canto: televisão, redação, produtora, assessoria. Assinaram um contrato: era preciso se encontrar a cada mês, se possível, a cada semana.

Chamava o pai, chamava a mãe. É difícil quando a coisa aperta de verdade. É preciso recorrer àqueles que te conhecem melhor que ninguém. Ele, agora, pelo telefone. Às vezes, frente a frente. Ela, que foi morar na floresta, por mensagem.

- Precisamos marcar aquela breja, né?

- Claro, é só marcar.

O diálogo dos amigos se repetiria dali a três meses, nas mesmas condições.

Vive assim. Como se fosse clipe de Chico, aquele do sinal fechado. Precisa correr. Esse texto já lhe consumiu muito tempo.

Quem sabe uma cerveja no dia que der para você, amigo.

segunda-feira, 7 de janeiro de 2013

Mãos esticadas


A vida por lá parecia simples, incapaz de deixar marcas. Trabalhe, trabalhe, trabalhe, supere a saudade. Seja bem-vindo à felicidade passageira, que acenava, sumia, e voltava mais brilhante logo em seguida.

Essa cena já fazia parte do filme. Jovem, era capaz de passar pela breve parte baixa da montanha russa. Aquilo não era suficiente para derrubá-lo. Era? Tinha 24 anos. Não era. Mente sã, corpo são. Vamos ganhar dinheiro e tratar de cumprir os objetivos, pois o jornalismo lhe espera a 9 mil quilômetros de distância.

Soava doce: "chico periodista...", proferida por um senhor que lutou contra Jorge Videla e as mazelas da ditadura argentina. O velhote, depois de 27 anos, entregava pizza, lavava o chão e contava, com certo exagero, como conseguia ser daquele jeito. 

Certa vez, disse que tudo ficaria bem, que era preciso seguir firme e forte. O futuro jornalista aceitara os conselhos. Mas não pediu nada. Nunca pediu que lhe esticassem a mão. Nem lá, nem aqui. 

Era forte o bastante para trabalhar, como se fosse uma máquina sem necessidade de manutenção. Como se isso passasse por cima das marcas que ficavam. Marcas deixadas por uma série de fatos.

E a vida pós-exílio se desenrolou dessa mesma forma. Nunca teve apenas um trabalho. Eram dois, três. Pode ter errado na medida. Provavelmente errou.

Imaginou, até com certa ingenuidade, que após o longo trajeto, descrito nas páginas negras deste blog, não existiriam mais recaídas. Nem as mais breves. 

Não. As pequenas marcas, juntas, tornaram-se grandes, uma só. Agora, era como se já fosse uma parte do corpo. E a montanha russa deixou de ser montanha, deixou de ser russa. Era plana, lá embaixo.

Estava tudo guardado, sempre esteve. E marcas pequenas, para piorar, continuaram sendo constantes. 

Vive agora por mais mãos esticadas. Como se todas lhes servissem. E provavelmente servirão. Como aquelas do velhinho argentino. Que lhes deram, sem qualquer solicitação, força numa época difícil de 2006. 

sexta-feira, 15 de junho de 2012

Íngreme, mas nem tanto

Encarava as fases e os desafios da vida como ruas íngremes. Era estranho, porque algumas vieram à tona cedo demais. Outras, tarde o bastante para serem superadas e odiadas, como se uma fosse combustível da outra.

Passei por uma, duas, três, quatro dessas subidas quase intermináveis. Enfim, há pouco tempo, achei que elas deixariam de existir. Não. Não era tão simples. Não era realidade. Não existiu caminho plano, tampouco plenitude.

Achara, por vezes, que a 3ª subida da vida era a menos íngreme e pensara em voltar àquela fase. Desistira, contudo, depois de pensar que teria que refazer o caminho no exílio, às moscas, com saudade, com dinheiro e sem aconchego.

Mas por que insistir em enxergar esses capítulos de forma tão negativa? Por que tentar entender, quase à exaustão, a causa disso tudo? Como se fosse possível juntar os erros e isso fosse um atalho do atalho para a rua mais fácil de caminhar.

Mirava o topo, mirei de novo, mirei o novo. Entendera, assimilara e, então, continuara a trilhar o caminho. Devagar e sempre. Em direção ao topo que não corresponde ao ponto mais alto da cidade.

Andei, literalmente, por uma rua íngreme depois de mais um dia de trabalho. Entendi a certa altura da caminhada --e da vida --que haverá fases repletas de subidas e descidas. Seja com 30, 40, 50, 60 ou 70.

sábado, 4 de fevereiro de 2012

No sopro de vida, a vida, enfim

- É difícil, né?

- Muito, mas tenha fé.

A pergunta foi feita por um homem de mais ou menos 60 anos. Confesso, nunca havia visto por ali aquele senhor de olhar apreensivo e frases curtas. Eram assim pois eram interrompidas por um choro quase copioso.

Eu já estava habituado à cena. Eram muitas as pessoas que me olhavam e pediam força com o olhar. A recíproca era verdadeira nos primeiros dias em que estive naquele lugar. Sala acanhada, que recebia 15 pessoas em cada horário de visita. Dois bancos de madeira acomodavam apenas seis delas. Certa vez, no curto espaço entre os assentos, um grupo, de mãos dadas, orou em mais uma manifestação de fé nas mais diversas religiões.

A rotina era essa há quase 10 dias: hospital, corredores com macas, escadas com odor de éter e, por fim, a sala pequena repleta de olhares apreensivos. Era preciso ter fé. A frase de Mahatma Gandhi em uma das portas de acesso à UTI confortava e evocava. Fé e força já estavam também incorporadas àquela rotina.

Eu ainda estava sentado em um dos bancos de madeira. Esperava pelos 10 minutos diários ao lado dela. Força recarregada às custas de uma breve caminhada até a maternidade, que, cheia de vida, ajudava a renovar o estoque. Pela fresta, procurava os bebês de Pariquera-Açu. Procurava olhares mais alegres. Quase sempre os achava. Ali, naquele hospital, também existia vida. Vida nova. Com fé e força, vida renascida.

Renasça. Era sempre esse o pedido: renasça, pois há milhares de pessoas te esperando. Renasça, pois você só pode ir embora quando estiver bem velhinha. Não é você que gosta tanto deles? Pois então, seja uma um dia. Seja uma velhinha bem bonita daqui uns 60 anos. Continue assim: forte e cheia de vida. Faça 23, está logo ali.

Tirei o avental, fiz um agradecimento aos enfermeiros, passei pela porta com a frase de Gandhi e retornei à sala que antecedia a UTI de Marias, Antônios e Josés. Naqueles 10 dias, UTI de Juliano, de Edelina, de Carlos, de Daliane e dela.

Eu tive fé. E ela, renascida, teve vida. Tem vida e chegará aos 23, aos 37, aos 49, aos 60, aos 70, aos 80, aos 90 anos. Para tornar-se, assim, uma velhinha bem bonita. A mais bonita. Não será difícil, basta manter o sorriso no rosto. Basta continuar linda. A mais linda. Basta ser quem você é.


quinta-feira, 3 de novembro de 2011

Saudade daquele tempo. Saudade?

As velhas cenas me vêm à cabeça pelo menos uma vez por dia. E olhe: nunca estive com a mente tão cheia. As lembranças daquele tempo, no entanto, se encaixam e, compactas, trazem à tona os velhos capítulos da história.

Período tão essencial e necessário para chegar até aqui. Período descartável em alguns aspectos. Responsável por lembranças que chegam, misturam, chacoalham, confortam, machucam e cravam no peito uma saudade de tudo que foi vivido um dia.

Já percebeu como a gente teima em ter saudade? É sempre assim. Nunca há felicidade plena. Há sempre resquício de um tempo em os momentos alegres pareciam mais reais, mais vivos, mais intensos. Saudade que nem sempre mereceu chegar a tal status.

Primeiro são as avenidas largas. Estou em uma delas agora. Dirijo um carro automático sonhando com avenidas apertadas e um milhão de pisadas na embreagem. Aqui não tem trânsito, lá tem. Prefiro, pois, carros e mais carros. Monóxido de carbono na cabeça.

Depois, a casa sem muro, com lago no fundo. Lago? Para quê? Sou mais um pombal de dez andares cravado entre milhares de outros edifícios.

Na frente, um gramado, um balanço e três carros parados. Quero asfalto. Asfalto! Não precisa de carro. Encaro ônibus, lotação, carona e bicicleta.

Agora, as praias. Como são insossas. Entoo em pensamento os versos de Gonçalves Dias. Pois são dignos, retratam a mais pura verdade: "as aves que aqui gorjeiam não gorjeiam como lá".

São 6h45. Entro no trabalho às 7h para lavar 300 carros até a meia-noite. Há somente uma fita no rádio capenga do carro velho. Ele toca sempre as mesmas três músicas. Me levam de volta para o Brasil. Bastam.

No quarto, há um mapa da metrópole de 19 milhões de habitantes. A metrópole onde nascera e fora criado. Não quero país com 51 estados. Não curto cidade com quatro ilhas e metrô a cada esquina. Não quero. Quero as minhas três linhas decapitadas, sem a mínima conexão e condição.

Percebeu?

Que tal ensinar a si próprio a viver o presente? Só ele basta.

Perder tempo com saudade do passado é roubar tempo de si mesmo. Tempo que não volta. Tempo que é preciso viver de um jeito ou de outro lá na frente. E quase sempre é necessário vivê-lo em forma de saudade.

Se for pra ter saudade, tenha de um tempo que ainda não passou. Zere a vida. Arranque do peito a saudade do passado.

quinta-feira, 27 de outubro de 2011

As árvores da Fradique

Ele ainda não sabia contar. Só olhava para cima e contemplava a maior árvore da rua. Boca aberta, fascínio puro e o olhar fixado em uma das copas que entravam por entre os fios elétricos.

Nessa época, maio de 1986, a rua Fradique Coutinho enfileirava uma árvore atrás da outra. Uma, duas, três, quatro, cinco, seis, sete. Daí para mais. Só na saída do prédio onde morava eram duas, uma de cada lado.

Copas grandes, que além de estender uma bela sombra na calçada larga, serviam para transformar a rua num pisca-pisca grandioso durante o mês de dezembro.

Havia pedaços de rabiolas também enroscados às copas e aos fios. Se havia rabiolas, havia crianças. Pinheiros, na década de 1980, era repleto de crianças. E olha que se havia árvores em demasia, crianças eram muito mais. Umas 20 por árvore só naquele trecho da calçada larga. Quando estreitava, prestes a chegar à rua Teodoro Sampaio, sumiam as árvores e as crianças.

Ali, onde a calçada ficava estreita, era o limite determinado pelo pai. A criança não sabia contar, tampouco podia transpor a barreira da calçada larga.

Com quatro anos, o menino usava o espaço permitido para pedalar sua tonquinha laranja. Isso ocorria quase sempre aos domingos antes do almoço, lá pelo meio-dia, quando o sol fincava as luzes nas entranhas das copas. O encontro transformava a paisagem na mais bela da história da Fradique. Sentado na tonquinha, contemplava.

Deu cinco pedaladas, que foram turbinadas por uma sandália marrom grudada nos pedais azuis. Não era possível, no entanto, nem com a poderosa sandália, alcançar o irmão mais velho. Este que já estava quase no limítrofe onde não havia árvore e nem criança, à beira da Teodoro Sampaio.

Por um momento, esquecera das copas das árvores. Era mais fascinante o mistério que o outro lado exercia sobre a cabeça que não ainda não sabia contar, só contemplar. Era necessário alcançá-lo para tentar. Quem sabe ali, ao lado do seu companheiro maior, o pai o deixasse alçar voo.

Não.

- Já é uma hora. Vamos almoçar na tua tia. Vamos agora - disse o pai.

A cabeça vazia perdoaria a interrupção, afinal haveria outros domingos para a façanha. Não perdoaria, contudo, se soubesse que dali a três meses a família mudaria para um bairro distante, no qual não era possível usar tonquinha para chegar à fronteira.

Mais arborizado e calmo, o bairro fez com que o limite da Fradique fosse esquecido. Fora guardado, contudo. Eis que 25 anos depois, as cenas daquele maio de 1986 vieram à tona. Desceu do ônibus, atravessou a Fradique, a Cardeal e ficou de frente para a árvore de copa grande.

Num tempo em que a cabeça não para, parou.

Não sabia mais contar, como se fosse 1986. Sabia, de novo, contemplar. E contemplou. Viu a tonquinha, o irmão e, lá no fundo, a barreira. A quinta-feira insossa e escura se transformou em domingo meio-dia. A sombra tomava toda a calçada larga da Fradique.

O barulho do motor do ônibus, porém, o trouxe de volta a 2011. O limite já havia sido ultrapassado há tempos. E pálido, esquecido. Se soubesse o que o esperava do lado de lá, às margens da Teodoro Sampaio, teria ficado a vida inteira entre as árvores da Fradique e as 20 crianças para cada copa grande. Teria tentado alcançar o irmão. Só alcançar. Dariam meia-volta e esqueceriam o desafio.

O limite foi superado. E agora, sem contemplar nada, a cabeça cheia voltou a contar. Uma, duas e três. A Fradique tem três árvores.